Ser Madeira (Histórias de Uma Outra Viagem) - Parte I
Levantar cedo, amanhecer o coração e a alma num quarto de tons quentes, aconchegante e protetor, sair para a rua, respirar o ar fresco e húmido da manhã e percorrer os caminhos da freguesia catapultam-nos para um estado de espírito zenístico e idílico que se traduz numa sensação de leveza e de paz interior. Música on e descemos a ruela vazia, a estrada ainda despida de gentes, com apenas alguns carros a quebrar o silêncio e a passarem esporadicamente. Sentimos os cheiros no ar, as flores imperam nas sensações e estamos a viajar numa paisagem única e deslumbrante. A primeira subida aproxima-se e desacelera-se o passo. É preciso controlar a respiração, porque a humidade apodera-se do corpo e envolve-nos num pesar estado de nostalgia e entrega concentrada e empenhada se queremos chegar ao cimo das alturas. Uvas americanas assombram-nos com odores que viajam na leve brisa que nos acaricia a face já ruborescida. O ritmo cardíaco eleva-se e a respiração torna-se mais ofegante. Terminamos o primeiro patamar. Retomamos a cadência e recuperamos, ainda que momentaneamente, as forças. Daqui, já temos uma vista mais abrangente de toda a freguesia e da cordilheira central e do mar. Mar azul. Lindo. Imenso. Ao longe, escondida pela bruma, a ilha do Porto Santo. Lá no cimo, bem acima das nuvens, o pico. O Ruivo. O mais alto. Um chão nivelado. Um momento breve de descanso imaginário. No espírito, funciona. E cantamos para dentro. Cantar ajuda. Abstrai-nos do mundo e apenas vivemos a surpresa do que nos rodeia. Um imenso bordado de sensações e cheiros imortalizados na tela da mente. Esquecemos angústias e medos. O plano do caminho terminou. Volta a ascensão. A subida íngreme, acentuada, sente-se no corpo. A humidade no ar volta a envolver-nos. Cansa-nos. Mas não desistimos. Ritmadamente, de novo, entregamo-nos à labuta da progressiva e crescente pseudo climbing. Novo final. A vista é soberba. Um vale aninhado na ribeira, nada de casas lá em baixo, e uma terra perdida num monte, carregado de casario e casarões, sinal da riqueza exteriorizada pelos nossos bravos emigrantes encaminhados governamentalmente para terras sul americanas, em busca do south american dream. Chegamos ao Pico. A estrada alcatroada (antigamente, era de pedra vulcânica, mas quis o progresso e o poder do dinheiro que se transformasse) é plana e rectilínea. Abre caminho por entre novo casario e casarões. Também aqui há emigrantes. Cumprimenta-se todos quantos agora começam a passar. É má educação não o fazer. O dia acordou. Atravessa-se novo sítio e regressa a descida providencial. O tempo vai mudando ao longo do percurso.