Se Eu Fosse Eu (Histórias de Uma Vida Banal) - "O Outro Eu" (Parte I)
O despertador tocou musicalmente no quarto de A. Acordou. Resmungou. Estremunhou. Virou-se. Espreguiçou-se. Movimentos lentos e desarticulados numa dança rotineira que, quebrando a sonolência de um sonho acordado, revelaram um esforço infrutífero e estupidamente inglório para elevar a alma e o corpo ao céu do mundo. Ou talvez, só ao céu do quarto. Pronto. A. acordou. Manifestamente revoltada com esta incontornável condição imposta, de um acordar brutal e eruptivo, ainda que musical, levantou-se finalmente e com uma elegância desajeitada do glamour perdido pela noite mal dormida, flutuou em espiral descendente (ou deveria ser ascendente?!) até bater com o nariz na porta. Outro quarto? Ali costumava tomar banhos perfumados e relaxantes. Estranhou a falta da banheira floreada de miosótis e gardénias. As toalhas frutadas e macias nas maçãs do seu rosto e na juventude do seu corpo. O espelho reflectindo a sua enigmática e pouco exuberante sombra. Que estranho quarto, observou! Sabia que o universo paralelo existia apenas na sua mente demente (alguns diziam!) e que a sua vívida e fértil imaginação esquizofrénica permitia pintar quadros e construir cenários fabulosamente elaborados, coloridos até, porém, irreais! Surpresa! O despertador acordou, de novo, e emitiu, numa onda acústica de notas musicais de classicismo puritano, a 9ª Sinfonia de B. A música envolveu A. e percorreu todos os poros, massacrando delicada, pausada e positivamente todos os sentidos. Sim, o massacre era real e corrosivo! Porquê tentar fugir? Ouvi-la era uma tortura, uma aberração de um passado presente, incógnito e volúvel, improvável e suplicante! E A. sentiu-se quebrar, como em tantas outras manhãs (ou noites!) de uma vida vazia, oca de sentido, de razão, de emoção. Quebrou antes de se vestir! Outra vez!