Se Eu Fosse Eu (Histórias de Uma Vida Banal) - "Se Eu Fosse" (Parte I)
A maçaneta da porta branca mexeu-se. Rodou e abriu-se. Ela espreitou e sorriu. Tranquilizou-se. O quarto estava silencioso e perfumado. O cheiro a bebé invadia a divisão com tal intensidade que seria impensável não poder querer ser, um dia, a reencarnação de um pequenino e inocente, mas desconcertante e incompreensível testemunho da continuidade bíblica (ou pagã) da vida.
Fora bruxa na outra encarnação. O seu poder era inesgotável e sôfrego de paixão e morte. Desejaria ter sido um anjo, mas o demónio decidiu assim e assim ficou. Não controlava o que era; gostaria de ser diferente, menos brutal, menos fria, menos gótica, menos tempestuosa e impulsiva, menos touchy, menos imortal, menos freak. (Freak is good, they say! Really?!) Uma, no meio de outros; invisível, impercetível, incógnita, desconhecida. Se eu fosse, se eu pudesse ser, seria... O quê?
O bebé despertou do sono sem sonho. Abriu os olhos e viu a sua cara. Ambos desfizeram as expetativas felizes e começaram num pranto sonoro que acabou por se tornar na leveza de uma cascata de azul cristalino, percorrendo encostas e vales de um verde esmorecido de dor perdido, no rio das pratas de diamante disfarçadas. As lágrimas engrossavam cada vez mais o leito do rio que se tornou mar.