O Abandono de Nós
A tristeza invadiu-lhe o coração. Era a única sobrevivente do massacre levado a cabo naquela noite, na sua aldeia. Até agora, a aldeia tinha sido poupada, mas todos o sabiam, haveria de chegar o seu dia, o dia da queda, o dia fatal. E lá se acercou. Lá lem, na sombra dos pinheiros mansos, ainda frescos de cor e resina, deixou-se cair e entregou-se ao aperto da alma. Como podemos ser todos seres da mesma espécie que se matam, mutilam, torturam, desprezam, aniquilam com prazer óbvio? O que nos aconteceu? Aconteceu o mundo, responderam-lhe certa vez. Aconteceu a vida, outros enfatizaram, num outro tempo. O abandono de nós tem sido progressivo. A espécie selecciona apenas os mais fortes, mas, acima de tudo, os mais espertos, não necessariamente os mais inteligentes. Estes, são aqueles que aproveitam as oportunidades, quando elas surgem e nunca olham para trás, não têm compaixão ou nutrem qualquer tipo de empatia pelo próximo. Ela compreendia tudo isto. Os homens da família tinham-lhe contado a história do mundo e dos outros homens centenas, milhares de vezes e ela interiorizara as coisas. Mas, forçava-se a lembrar apenas das coisas boas, porque as havia. A aldeia estava destruída. O povo morto. A vida escureceu e o cenário foi pintado de cinzento bem escuro. Os homens da família haviam sido levados em carroças imundas e desumanas. A sua mãe, enterrada na vala comum do morro faminto de corpos. Perdera o rasto do seu ser. A consciência abandonara-a e a apatia de alucinações feita, ainda que temporária, provocada pelo choque, pela fome, pela brutalidade humana, invadia-lhe o espírito. Alguém a chamou. Anda, aqui, sussurrou. Olhou em redor, mas nada viu. Nenhum movimento, nenhuma sombra, nenhuma forma. Anda, aqui, de novo. Desta vez, viu, mas pensou estar a sonhar ou já moribunda. Uma pequena fada luminosa e bela, abeirava-se do seu ouvido. Anda, por aqui. Lançou-lhe a sua magia e o feitiço em seu redor e tudo se transformou. O abandono de nós já era e o coração encheu-se de esperança e de amor. O cenário mudou, a aldeia renasceu das cinzas, os homens da família voltaram e a sua mãe vivia. O povo reviveu. Tudo era cor, alegria e felicidade. E espanto. Os seres da mesma espécie abandonaram o seu lado negro e os fortes e espertos salvaram das trevas todos os seus irmãos. Ela adormecera, finalmente, e agora, lá do céu, lançava qual papagaios de papel, ao vento, os seus sonhos. Mas só os sonhos felizes. E é neles que temos de acreditar.