Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

A Esquina do Desencontro

Histórias de Desencontros Ficcionais (ou Não) na Esquina da Vida

Deleites e Maleitas Matinais

24.05.16 | Cuca Margoux

Se estivéssemos no cenário campestre abençoado, acordaríamos com o estridente e sonoro cantarolar do galo da vizinha centenária, Dona Maria Silva Núncio, o chilrear melódico e palatinado dos rouxinóis estouvados e o murmurejar do ribeiro translúcido que banha as margens verdejantes, carregadas de prazenteira flora colorida e perfumada. Assim, como nos refugiamos na urbe descomposta e desmazelada, em busca do el dorado financeiro e do conforto desconfortável da modernidade retro vintage, ensurdecem-nos as onomatopeias incessantes e incansáveis que enchem os ares e os ventos tempestuosos, a poluição desmedida da virtuosa população citadina que mata qualquer amostra floral de inebriante perfumar, os tropeçares constantes nuns e noutros, os apertos, as enchentes, as filas intermináveis, a sinalética inesgotável e proliferante, a promessa de uma vida melhorada e ajustada a cada qual. Mas, pasme-se, nem tudo são maleitas. Os cheiros que se infiltram pelo canto da janela de vidro mal vedada, mas que resiste heroicamente ao desgaste das intempéries humanas e naturais, nas narinas que ainda despertam, transportam-nos para prados de verde pintados, montanhas resplandecentes de beleza e vida, piqueniques ao ar livre, envoltos em brisas perfumadas, deleites aprazíveis e retemperadores que se querem esfumar, qual nuvem abraçada pelo vento de leste, mistérios e arte minuciosa de Chef de Croissanterie. São aqueles cheiros que nos fazem ter a fé de que as maleitas matinais se irão transformar em puros deleites e que o dia, afinal, ainda que tenha amanhecido estremunhado e caótico, será bem mais surpreendente e fabulástico do que seria de esperar. E são essas iluminuras olfactivas que nos fazem sorrir, sair de casa e enfrentar o mundo bastardo lá fora. O corropio começa.