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A Esquina do Desencontro

Histórias de Desencontros Ficcionais (ou Não) na Esquina da Vida

A Minha Filha É Médica

06.12.24 | Cuca Margoux

Seis anos depois, o primeiro penoso e sinuoso caminho académico termina com todo um cerimonial e uma pompa que parecem determinar que o futuro, afinal, talvez possa ser leve e risonho. Literalmente, é uma ilusória fantasia. O que está para trás e os incontáveis sacrifícios já não importam, foram temporariamente esquecidos. O certo é que tudo é mesmo difícil quando se quer, especialmente por vocação, singrar no mundo da Medicina. As preocupações e dificuldades começam logo no secundário, a partir do 10º ano. Aliás, muito antes, se queremos acautelar que uma boa base académica foi devidamente alicerçada e consolidada. As médias, essas, devem começar a ser logo progressiva e exaustivamente trabalhadas no decurso dos três últimos anos da primeira fase de estudos intensos no secundário. Se não houver média de (quase) excelência, leia-se no mínimo normalmente acima de 18 valores, não há sequer a hipótese de considerar entrar no curso de Medicina. Ainda por cima, a Faculdade escolhida já estava bem definida na mente estudantil, o objectivo era entrar na Nova Medical School. Muitas horas de estudo, muito stress, múltiplas batalhas, muita entrega e muitas frustrações e desilusões depois, a média arduamente batalhada durante os tais três anos foi garantida. Mas, há ainda que conseguir efectivamente entrar, porque as notas são todas muito altas e as vagas sempre limitadas. A Nova foi, desde o início, a primeira escolha e a entrada tão sonhada foi, felizmente, assegurada com sucesso. É que desde muito pequenina que a minha filha queria ser Médica, ou seja, o trabalho da sua primeira fase de vida académica foi consagrado a garantir que conseguiria média para poder entrar no curso de Medicina. Iniciaram-se, pois, seis anos bastante duros e consideravelmente intensos de Mestrado Integrado em Medicina. Variadíssimos estágios em diferentes hospitais, deslocações para sítios improváveis, professores e exames sempre complexos, matéria infinita até mais não, no primeiro ano o terror da Medicina, a cadeira de Anatomia, que desmobiliza muito candidato a Médico, bem como as famosíssimas autópsias, e tantas outras subtilezas nada subtis assinalaram todo o trajecto. Devo dizer que a vida do estudante de Medicina, bem como a da sua família, fica literalmente condicionada por todo um intrincado desenrolar consideravelmente incerto determinado pelo tortuoso percurso académico que nos faz pensar muito seriamente nas fragilidades exponenciais do ser e do estar humanamente possíveis. O que somos e o que queremos ser é constantemente questionado, e a esperança na ciência e na humanidade, tantas vezes contestada, no depois, acaba por definir todo o desígnio académico, imperando, por fim, a aceitação resignada do status quo e quase sempre, infeliz e inevitavelmente, alguma considerável desilusão. O curso da minha júnior Médica enfrentou, pois, a pandemia de Covid-19. Tempos bem árduos e extenuantes para os futuros jovens médicos, em que a sua entrega teve de ser ainda mais total e completa. Muito mais, portanto, do que o habitual. Mas, a júnior mais sénior lá sobreviveu a todas as adversidades e, finalmente, em 2024, é oficialmente Médica. As burocracias associadas à inscrição na Ordem dos Médicos não são definitivamente fáceis, mas ultrapassaram-se, apesar de tudo, sem grandes impedimentos de maior. A seguir, soma-se a preocupação mais assustadora e bem realista que é a Prova Nacional de Acesso (PNA) à Especialidade. A provação e o estudo para esta malfadada, muito contestada e, por vezes, não muito bem elaborada prova inicia ainda no fim do Mestrado e prolonga-se durante um ano até ao dia da prova propriamente dita. É um verdadeiro desafio e um quebra-cabeças provocador que questiona a sanidade mental de qualquer um com afinco. A nota de curso vale 20% e a da determinante PNA 80. Parece ser manifestamente ridículo o peso da prova, bem como o algoritmo que fixa a nota final de candidatura à especialidade, mas é o sistema de avaliação que existe e há que respeitá-lo. Fazer a PNA, que é composta por duas partes, que decorrem numa manhã e numa tarde, no mesmo dia, implica todo um ritual logístico complexo e necessariamente agilizado, com intervalo para almoço. Todos os momentos são críticos, desde a chegada ao local da prova, sempre envolto em grande stress, especialmente para quem vem de longe, até às condições e regras que medeiam a realização da dita. Sinceramente, naquele dia, não sei dizer quem estará mais nervoso, se o futuro médico, se os pais. Por mim falo. É um dia crítico e uma prova decisiva que determina todo o futuro na especialidade. Os nervos estavam à flor da pele pela hora do almoço, altura do merecido intervalo. A primeira parte não terá corrido muito mal, mas no final da segunda parte, aquando da saída, e após a expectativa e os aplausos tão esperados, o entusiasmo estava mais contido. O resultado posterior à PNA, ou seja a entrada na especialidade pretendida, é sempre uma verdadeira lotaria, depende das notas do exame, das vagas e das primeiras escolhas dos candidatos. O veredicto só é conhecido em Março de 2025, altura em que as notas serão oficialmente reconhecidas e divulgadas. Até lá, a angustiante espera deixa todos impacientes. Mas, temos mais uma etapa concluída. As etapas seguintes são a Cerimónia de Graduação e o Juramento de Hipócrates. Para a Graduação, o dress code era fato escuro. A cerimónia realizou-se no Campus da Universidade Nova e houve direito a música e muitos discursos, mais ou menos emotivos, mas sempre profundamente tocantes. A felicidade estampada nos rostos dos futuros médicos é bem expressiva do simbolismo deste ritual. Com direito a um cocktail e muitas fotos depois, partimos com a sensação de que se completou mais um ciclo decisivo na vida dos nossos júniores. É sempre muito emocionante. Agora, só faltava mesmo o Juramento de Hipócrates, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa. E, será este o culminar de uma série de tradições e costumes que se vão passando de geração em geração ao longo das décadas, para todos aqueles que querem seguir a carreira médica. O Juramento de Hipócrates reveste-se de extrema importância, uma vez que traduz o sentido de missão e de compromisso assumido pelos jovens médicos em prol da saúde e dos seus doentes. Assim, e num semblante mais leve, mais informal em termos de indumentária, mas mais formal em termos de protocolo, uma vez que tivemos a presença do Presidente da República, do Bastonário da Ordem dos Médicos e demais pares e afins, pudemos assistir a mais uma série de momentos musicais muito interessantes e a discursos mais ou menos efusivos, mas que culminavam sempre numa mensagem de advertência aos jovens médicos, o que os espera é o pleno sentido de missão e compromisso para com o serviço público, ética e profissionalismo, muito e árduo trabalho, poucos recursos para o fazer, muitas horas extraordinárias, falta de tempo para a família, amigos e lazer e salário medíocre. Perante este panorama nada motivador será de admirar como é que ainda há quem queira seguir a sua vocação médica e uma carreira na saúde, mas a minha filha é uma dessas pessoas. O Juramento de Hipócrates, ou de “Hipócritas” como muito bem “comediou” a minha júnior mais nova, num hilariante momento de inspiração humorista, foi declamado bem alto e em bom tom, com emoção, muita esperança e, espera-se, muito e verdadeiro altruísmo, compaixão, benevolência e muita entrega ao próximo. Não sei se todos o sentiram da mesma maneira, mas a minha filha efectivamente comprometeu-se com uma entrega total e completa a uma carreira e a uma futura especialidade, de preferência Pediatria. Espero, muito sinceramente, que tudo se operacionalize pelo melhor, como ela sonha e tanto almeja, e que ela se venha a revelar uma profissional de excelência que ajude sempre os outros e que salve muitas e tão preciosas vidas. Em Janeiro de 2025, iniciará o chamado Ano Geral Comum, em que irá retribuir com o seu trabalho o investimento que o Estado fez na sua educação académica. Se tudo correr bem, em Janeiro de 2026 iniciará a especialidade, em Pediatria, e terá mais 5 anos de muito estudo e de muita prática pela frente. Em boa verdade, só se poderá intitular Médica Especialista depois de uma formação intensiva teórico-prática que dura uns assustadores 11 anos. É uma vida verdadeiramente dedicada ao estudo e à vida humana. Um bem-haja a todos quantos abraçam esta tão desafiante carreira. Muito obrigada, pelo vosso serviço!