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A Esquina do Desencontro

Histórias de Desencontros Ficcionais (ou Não) na Esquina da Vida

A Fábula do Desacerto

11.09.24 | Cuca Margoux

O viajante ainda olhou para trás, mas já nada viu. O espaço preenchido anteriormente, com as almas vidradas pela magia do sonho desprovido de sentido partiram, afinal. Quando tudo começou, ninguém pensava na verdade das coisas, no sentimento alienado, no profuso desprendimento do coração. O que o viajante viu, foi um povo perdido nas suas estranhas lendas, fechado e recluso de si próprio. Trouxera-lhes alguma alegria, por alguns dias, dias felizes, achava ele. Se calhar, apenas o terão sido para o viajante, cuja percepção limitada daqueles momentos era claramente confusa e condicionada, e o povo com as almas vidradas terá apenas embalado a sua canção de vivência esquiva no cenário teatral e fantasioso do viajante. O desacerto começou logo ali, depois da primeira conversa. O pranto da jovem era frustrante e o viajante não compreendeu as razões escondidas. Tudo é, em pontuais suspensos momentos, equívoco e desvio incompreensível. O viajante fechou os olhos e esforçou-se por tudo relembrar, de novo, mas já não conseguia. O espírito guia do povo com as almas vidradas tudo apagara da sua memória. A crença de que o viajante enfeitiçava com fábulas despropositadas as mentes moldáveis dos mais jovens, assustava o espírito guia. E, assim o era. As fábulas recriadas pela vívida imaginação do viajante pautavam pela criatividade extremada, enviesando pensamentos, lógicas, tradições e costumes. Afinal o desacerto em si mesmo, já é uma pretensa fábula, porque a narrativa incide sobre um hipotético conceito inanimado. Na realidade, tempos mais tarde, o viajante descobriu que o povo com as almas vidradas era descendente dos felinos esquecidos pelos homens, algures, numa qualquer montanha, e réstia de uma outra lenda. O viajante voltou a olhar para trás e, desta vez, viu. O espírito guia assim o deixou. Findo o desacerto, o viajante foi autorizado a ver a jovem em pranto a sorrir, a ver o povo com as almas vidradas alegre, vivo e próspero. E isto descansou o viajante. Fechou, uma última vez, os olhos e partiu em paz. Não há moral implícita neste recurso a fábula, que de fábula pouco tem. Apenas a consciência de que o desacerto é sempre temporário e de que tudo, a seu tempo, com paciência, se acerta, de novo.