Acidentes e Descondução
Factualmente, somos obtusos milhões.
Condutores desenfreados e mal amados.
Manobrando, virando, circulando, estacionando, avançando, recuando.
Uns, com mais talento natural, outros, sofrivelmente sobrevivendo numa estrada que tal.
A guerra diária do trânsito infernal é dura e malfada.
As horas perdidas, o tempo que não volta, um suplício anunciado e um desgaste mortal.
As buzinadelas, um acordar deveras histérico e mal-humorado.
As filas, visões aterradoras de alcance condicionado.
Os veículos nos levam e nos trazem, por vezes, não tão inteiros assim; perdemo-nos em pensamentos alheados.
Pedaços de nós e da nossa alma são deixados nas histórias contadas, naquele habitáculo feito lar.
Por vezes, forçam-nos a paragem, embatem forte, mas continuamos.
Conduzidos pela busca eterna da felicidade, movemo-nos electricamente, numa qualquer ilusão utópica de salvar o nosso futuro.
A descondução do mundo é gradual, a viagem, sempre real.
Terceiros e primeiros, seguradoras e mecânicos, interacções usuais, estragos brutais.
Mobilidade, deslocação, acidentes, atribulada condução.
Regras estranhas, regência duvidosa, aplicação dúbia, aprendizagem monótona.
Prazer e lazer, trabalho e profissão, família e cão, determinam as difíceis escolhas, sem padrão.
Marcas milhentas, construtoras fraudulentas, emissões poluentes, materiais insustentáveis, gentio descontente, humanidade ausente.
Evolução repentina, tecnologia interiorizada, experiências inacabadas.
Acidentes e descondução, dúvida e despudor, negação.
Atentar aos sons, movimentações e deslocações, sinais e invenções.
O que é, talvez seja, o que não é, talvez, também, afinal, seja.
Virtuosa ilusão do engano, apetecível descompressão da viragem feita de forma ousada.
Um dia, talvez ultrapassem os decapitantes acidentes, num percurso sinuoso descontrolado, talvez a descondução deixe de ser, finalmente, premiada, e a vida prossiga, de novo, sem alhada.