O mágico estava disparatadamente nervoso, olhando resguardado o público, atrás da cortina aveludada que escondia a sua esbelta, mas discreta e ausente figura. Sabia que aquele público de lunáticos extra-terrenos era difícil de entreter, uma provação portanto, e contido na extravasão das emoções mais primitivas. Alguém lhe tinha pedido um espectáculo muito especial, condicionado por requisitos limitativos intimidatórios, há cerca de três semanas. O mágico retraiu-se, por secretamente duvidar da sua capacidade ilusória para iludir aquele tal público copioso e palavreador. É que os lunáticos extra-terrenos, aqueles seres de galáxias bem distantes, têm de acreditar na magia. E só acredita na magia, quem abre o seu coração e sonha. Mirando a mirabolante plateia, de modo algum sustentava o sucesso futuro da sua apresentação. Mas, sabia, não havia volta a dar, pelo que deixou-se levar pelo ambiente exótico e acreditou que os mágicos de outrora estariam em concertação para o protegerem e incentivarem. O rufar dos tambores soou e as cortinas foram afastadas. O mágico sentiu-se sozinho. Demasiado e, estranhamente, sozinho. O seu público, aquela plateia locupletada, talvez, quem sabe, por artes mágicas, evaporara-se. Não havia viva alma para amostra. O silêncio era ensurdecedor. A salva de palmas inexistente. Os corpos invisíveis. Atónito, o mágico percorreu os quatro cantos do palco, avistou o céu imaginário, reviu o horizonte limitado, prostrou-se, enfim, desiludido, no soalho de madeira encerado do grande palco. O teletransporte dos lunáticos extra-terrenos, afinal, funciona. Tirou a sua cartola. Abandonou o estado letárgico de espanto feito e entregou-se ao surrealismo do momento. Enfiou as duas mãos na cartola e, com a sua habilidade característica, mas modesta e humilde, retirou o optimismo da cartola e deixou cair o seu manto sobre si. As energias renovaram-se, a alma encheu-se e o coração reacendeu. Haveria espectáculo. O espectáculo de magia do mágico com optimismo na cartola, sem público.
Conhecido como Tarkhan Dress, ou Vestido Tarkhan, foi produzido entre 3482 e 3102 a.C.
Hoje sabe-se que era cinzento claro. Falta-lhe a cauda, mas a análise às suas formas faz crer que tenha pertencido a uma jovem adolescente, ou a uma mulher mais pequena.
Foi encontrado em 1913, num túmulo de Tarkhan, um cemitério da Primeira Dinastia do Antigo Egito.
A mãe acordou-a docemente com um beijo ternurento, ainda era de madrugada. Não havia luz lá fora e o breu ainda cobria a noite que queria fazer-se manhã. O despontar do sol chegaria a qualquer momento, mas teimava em atrasar-se de mansinho. A mãe sussurrou ao ouvido da petiz que aquele dia se revelaria único, muito especial e de extrema importância, ainda que velada, para a vida da pequena estremunhada que só agora conseguia abrir aceitavelmente os olhos. Quando se apercebeu de que dia era, a pequena despertou qual furacão sem anúncio. Sabia que a escola esperava, enfim, por si e que crescera durante a noite, operara-se aquela mudança de idade, prontamente explicada pela mãe há algumas incontáveis semanas atrás. A minha escola, pensou. Levantou-se, vestiu-se, degustou deliciada o manjar matinal que habitualmente a mãe lhe preparava, com a não menos habitual sofreguidão, e despediu-se dela com um aceno efusivo e determinado. Para além de iniciar a sua vida académica, iniciava também a sua mobilidade escolar autonomamente, calcorreando alegremente, e sozinha, os quinhentos metros que a separavam do recinto do agrupamento. Muitas coisas iriam mudar. Muitas coisas iria aprender. Muitas novas amizades iria fazer. Estava verdadeiramente feliz. A mãe cuidava que tudo se iria compor, este ano, na escola. Contava-se que, e isto apesar da educação ser considerada um dos pilares estruturais fundamentais para a sustentabilidade, progresso, evolução e consolidação de um país, devido a politiquices não muito bem explicadas, a escola tinha perdido o seu brilho interior e anterior: havia menos professores, e qualificados, menos funcionários, menos meninos, menos qualidade de ensino e de infra-estruturas/equipamentos de apoio, alimentação nutricionalmente deficiente e desequilibrada, etc. Na realidade, a mãe da pequena não sabia muito bem o que esperar do novo ano lectivo, mas mantinha a fé e a esperança de que algo iria mudar. Para melhor. As preocupações, quer de pais, quer de alunos, com as suas escolas é perfeitamente natural. Faz parte das escolhas decisivas que se fazem na vida e, portanto, têm de ser ponderadas com calma e tempo e devidamente analisadas e interiorizadas. A rotina familiar muda drasticamente. A gestão das expectativas de crianças e adultos é, por isso, determinada pela urgência do assunto. O espírito crítico construtivo é, consequentemente, fulcral. Assim, quer-se crer que nem a mãe, nem a pequena se sentirão desiludidas quando o dia cair e a noite surgir. Tudo e todos encontrarão os seus delicados equilíbrios e o rumo certo será retomado, recuperando-se pois a senda mágica do conhecimento e da iluminura. A minha escola o faz. A minha escola, decerto, o reforçará. Em espaços bem diferentes, os pensamentos comuns fizeram sorrir ambas.
Naquela manhã primaveril, acordei descalça para o céu. Levantei os pés, depois, as mãos e abracei as nuvens. Calcorreei levemente o chão frio imaginário e despojei-me de negativismos histéricos. Saltei, pulei e corri desalmadamente. O jardim cheirava a terra e relva e flores. Inspirei o mundo e derreti-me com os seus odores frescos e inebriantes. O pitoresco cenário que me envolvia, fazia-me sonhar com os contrastes montanhosos da minha terra distante. Que saudades daquelas paisagens deslumbrantes, que saudades do gentio carregado de rejubilante paz e alegria, que saudades dos lagos e lagoas ofuscantes na sua beleza pura, singelos na sua encorporação. Deixei a casa sonhada para trás e fui levada pela brisa condutora das magnólias e dos crisântemos. O perfume das flores embalava-me, aliás, como há já algum tempo o fazia. Quando me mudei para esta vila, o tempo e o espaço pareceram regredir e senti-me perdida. O meu alento veio da flora exuberante e rica que crescia em meu redor. A casa foi abençoada pelos encantos mil, simplificados q.b., é certo, mas, sempre condicionadores e consequentes dos recantos cuidados pelos jardineiros da alma. Quando, finalmente, parei, depois de sentir as pedras soltas na calçada incompleta da vida, o meu coração batia acelerado. O silêncio ensurdecedor abateu-se e vi tudo escuro. Só depois de recuperado o fôlego, e ao abrir, num pestanejar automático, os olhos, voltei a experimentar os sentidos em pleno. E aquele que sobressaía em intensidade era, sem dúvida alguma, o olfacto. O perfume das flores entranhou-se nas narinas despertas e encheu-me de vida, cor, energia, arrancando todos os pesadelos fantasma que assombravam a minha humilde e prematura existência. Continuei descalça, porque sentimos mais as coisas no toque. Ergui, de novo, os pés e as mãos e, desta vez, elevei-me qual pluma ou dente de leão soprados ao vento. E parti. Da vila, do mundo. Cheguei a nenhures e fiquei-me em talvezes. Mas, nunca esqueci o perfume das flores.